domingo, 29 de maio de 2011

Projeto - As intervenções garantidoras e violadoras de direitos

LUDMILA NOGUEIRA MURTA


TEMA: AS INTERVENÇÕES GARANTIDORAS E VIOLADORAS DE DIREITOS: UMA ANÁLISE DA ATUAÇÃO DO DIREITO E SEUS OPERADORES NO TRABALHO DE CASOS DE VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES



Projeto de pesquisa a ser apreciado pelos alunos da disciplina “Projetos de Pesquisa: Leituras Sobre Métodos e Técnicas na Sociologia da Educação”.

Orientadora: Flávia Inês Schilling

Linha de pesquisa: Direitos Humanos

Nível: Mestrado



São Paulo

2011


Resumo



A pesquisa tem como objetivo identificar e analisar como o Direito, através de seus diversos operadores, intervém nos casos de violência sexual contra crianças ou adolescentes efetivando ou violando direitos das vítimas por ação ou omissão. As hipóteses são de que o Direito intervém efetivando direitos através da atuação do advogado nas equipes multidisciplinares de atendimento e do trabalho do Judiciário e Ministério Público nas ações de responsabilização criminal do agente violador e nas que tratam da proteção da vítima (como as que impõem o afastamento do agressor, alteram a guarda ou autorizam a adoção); e atua violando direitos, por omissão, quando deixa de efetivar a reparação integral e quando não realiza a responsabilização, e por ação, quando dificulta a participação das vítimas no processo; quando coloca a participação como um dever, e não um direito, e quando permite a participação da vítima, mas de uma forma inadequada. Para tanto, será realizado um estudo de um caso atendido pelo NAVCV considerado pela equipe como paradigmático. Este estudo buscará identificar os pontos nos quais o Direito realizou intervenção no caso, determinando em quais deles houve efetivação e em quais houve violação de Direitos das crianças e adolescentes vítimas atendidas. Delimitados os pontos, serão realizadas entrevistas direcionadas para detalhar exatamente como tais intervenções garantidoras e violadoras vem sendo tratadas e compreendidas pelos operadores do Direito nos diversos espaços, de forma genérica (e não atrelada ao caso em si). Serão realizadas entrevistas com a equipe do NAVCV; Delegada Titular da Delegacia Especializada de Proteção da Criança e do Adolescente – DEPCA; Promotor e Juiz da Vara da Infância e Juventude; e Promotor e Juiz da Vara Criminal com competência para julgar crimes de violência sexual contra crianças e adolescentes. O produto das entrevistas será analisado em confronto com a doutrina jurídica e legislações em vigor para apontar o que é violador e o que é efetivador de direitos. Se possível, para os pontos violadores serão apontadas possíveis soluções. A importância desta pesquisa fica delimitada ao se perceber a escassez de produções acerca da temática da violência sexual contra crianças e adolescentes no âmbito do Direito, bem como a inexistência de debates formais críticos acerca da forma como o saber jurídico vem sendo aplicado no trabalho dos casos que demandam sua atuação.


Palavras-chave: violência sexual; crianças e adolescentes; Direito; violação de direitos; efetivação de direitos.


1 INTRODUÇÃO




O fenômeno da violência contra crianças e adolescentes não é algo novo. Não é algo pertencente à modernidade ou mesmo aos séculos anteriores, mas sim um fenômeno que pode ser encontrado nas civilizações mais remotas. Toda sorte de violações como exploração sexual, negligência e castigos físicos imoderados são relatados desde a antigüidade até os dias de hoje em todas as partes do mundo1. Apesar da continuidade das violações no tempo, o reconhecimento do público da criança ou adolescente não foi linear.

Ao longo do tempo, crianças e adolescentes foram sendo percebidas e cuidadas pela sociedade de modo diferente, com o reconhecimento de sua fase peculiar de desenvolvimento acontecendo de maneira gradativa. Bauman (1998, p. 177) descreve que durante o século XVI as crianças eram vistas como “adulto menor”, ou seja, nenhuma distinção de grande relevância era feita, inclusive em relação às peculiaridades da vida adulta: nenhum ponto desta constituía em um segredo, ou conteúdo inadequado, para as crianças. Já no século XVII percebeu-se o início de uma visão diferenciada, quando partes das casas passaram a ser proibidas para crianças que contassem com menos de oito anos de idade. Além desta restrição de circulação, Bauman também descreve a prática de vestir as crianças com roupas que denotassem a inferioridade e a incompletude da criança – com roupas grandes demais, ou abandonadas por outros membros da família.

Bauman (1998, p. 178) descreve que uma mudança efetiva no tratamento das crianças veio com o reconhecimento da criança como “criatura por si mesma, e de um tempo um tanto diferente, dotado de atributos peculiares”. Foi a partir daí que se identificou a necessidade de um processo de amadurecimento orientado da criança, em razão de sua fragilidade e incapacidade de auto-proteção. Desde então, a figura da criança foi recebendo reconhecimento e proteção progressivos, que culminaram com a separação entre a fase da infância e da adolescência, bem como com a proteção e reconhecimento jurídicos destas fases.

No Brasil há alguns marcos do reconhecimento jurídico da infância e adolescência. Inicialmente há que se falar do Código de Menores de 1927, voltado exclusivamente para os menores de dezoito anos que se enquadrassem na categoria de abandonados ou delinqüentes2. Este foi sucedido pelo Código de Menores de 1979, que manteve a mesma linha do Código anterior. Apesar de ter como antecedentes a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e a Declaração Universal dos Direitos da Criança e do Adolescente de 1959, este Código também foi precedido da Ditadura Militar de 19643. Com o advento desta legislação houve a consagração da Doutrina da Situação Irregular: o objetivo era tutelar o público alvo através da criminalização da pobreza. Não havia qualquer distinção entre o menor abandonado e o chamado delinqüente, pois a solução era sempre a mesma: medida de internação para qualquer dos casos por tempo indeterminado.

O reconhecimento real e digno da infância e adolescência no Brasil só veio a ocorrer a partir da Constituição de 1988. Voltada para as questões mundialmente debatidas no tocante aos direitos humanos, antecipou a integração das discussões ocorridas durante a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, colocando o Brasil como o primeiro país a adequar sua legislação às diretrizes traçadas na precitada convenção. O reflexo disso foi a adoção da Doutrina da Proteção Integral da criança e do adolescente, expressa no artigo 227 de nossa Carta Magna4, que expressa a garantia conjunta de direitos fundamentais a este público. A idéia é de que para se garantir um direito – como a liberdade – é preciso que todos os demais – como o direito à educação, saúde e outros – também sejam garantidos.

Prosseguindo na mudança do tratamento jurídico dado às crianças e adolescentes sobreveio a Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, instituindo o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que representou uma enorme ruptura com o padrão legislativo das décadas anteriores ao preocupar-se primeiramente em detalhar os direitos garantidos e anunciados pela Constituição para, só então, passar a tratar das hipóteses de violação. Este detalhamento de direitos especiais teve como objetivo garantir a cidadania, levando em consideração a condição peculiar de desenvolvimento de crianças e adolescentes. Garantida a cidadania, estes não mais serão encarados como simples objeto de direitos, de tutela da família, sociedade e Estado, mas sim, como verdadeiros sujeitos de direitos, reconhecendo o ordenamento jurídico que o potencial para a vida adulta digna só pode ser atingido diante do atendimento das necessidades enquanto sujeitos em desenvolvimento. Reconheceu ainda a distinção, baseada na faixa etária, entre crianças e adolescentes, considerando criança a pessoa com até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze anos completos e dezoito anos incompletos.

Uma das garantias dadas constitucionalmente e também pelo ECA é a da não violação de ordem sexual. Mas o que se entende por violência sexual contra crianças e adolescentes? A conceituação de violência sexual não é tarefa simples, pois como bem assevera Cezar (2007, p.28) é algo que depende do contexto cultural e/ou histórico em que for analisada. Entretanto, de acordo com os padrões ocidentais, é possível conceituar a violência sexual nas palavras de Dobke (2001, p.23) como “forma de violência física ou psíquica, na qual o abusador, sem consentimento válido, aproveitando-se de sua superioridade sobre a criança e/ou confiança que ela lhe deposita, busca a sua satisfação sexual, causando nela danos psíquicos”. Pelo senso comum a violência sexual acaba sendo associada à idéia única do crime de estupro, previsto no artigo 213 do Código Penal brasileiro. Atualmente, depois de alteração realizada pela lei 12.015/09, o crime de estupro refere-se ao ato de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal (relação pênis-vagina) ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Entretanto, estupro é apenas uma das possíveis formas de violência sexual. Pelo conceito explicitado acima, enquadra-se como violência sexual qualquer ato praticado, sem consentimento válido, com o intuito de obter satisfação sexual. Abarca, portanto, todos os tipos de toques, manipulações e encenações que tenham por objetivo obter o prazer de ordem sexual5. Cabe também aqui a conceituação do termo “vítima”. Para tanto, será adotada para o desenvolvimento da pesquisa aquela apresentada pela Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder em seus artigos 1º e 2º:


1. Entendem-se por "vítimas" as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido um prejuízo, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um sofrimento de ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus direitos fundamentais, como conseqüência de atos ou de omissões violadores das leis penais em vigor num Estado membro, incluindo as que proíbem o abuso de poder.

2. Uma pessoa pode ser considerada como "vítima", no quadro da presente Declaração, quer o autor seja ou não identificado, preso, processado ou declarado culpado, e quaisquer que sejam os laços de parentesco deste com a vítima. O termo "vítima" inclui também, conforme o caso, a família próxima ou as pessoas a cargo da vítima direta e as pessoas que tenham sofrido um prejuízo ao intervirem para prestar assistência às vítimas em situação de carência ou para impedir a vitimização.


A partir da ocorrência de uma violação sexual contra crianças e adolescentes pode-se pensar na atuação de três vertentes: policial/judicial, administrativa e sócio-terapêutica. O trabalho do caso de violência sexual vertente sócio-terapêutica ocorrerá através do acompanhamento da vítima pelo sistema de saúde (inclusive com a disponibilização da profilaxia necessária para cuidar dos efeitos físicos da violência) e também no campo sócio-assistencial, onde ocorrerá uma intervenção geralmente de caráter multidisciplinar, com atuação de profissionais da psicologia, serviço social e direito objetivando o trabalho com a vítima e sua família para a proteção, resgate da cidadania, fortalecimento de vínculos familiares, garantia de direitos e superação da violência sofrida. Já a intervenção policial / judicial será realizada através de ações e procedimentos oficiais necessários para responsabilização do agente violador e garantia de direitos da vítima, e serão realizados pela polícia judiciária, Judiciário e Ministério Público. Na vertente administrativa, a intervenção ocorrerá pela atuação dos Conselhos Tutelares, que acompanharão os casos a partir de atendimentos pontuais às famílias, aplicação de medidas protetivas6 e encaminhamentos para garantia e efetivação de direitos (como encaminhamentos para atendimentos de saúde, inserção da rede de educação, dentre outros).

Entretanto, o fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes é multifacetado, e para o seu enfrentamento há que se desenvolver concomitantemente ações articuladas entre as três vertentes. Exige, portanto, uma ação coordenada entre todos os agentes que atuam com a temática, de forma a garantir um trabalho global dos casos para possibilitar a superação da situação de violação. Para tanto, basta imaginar que a mera condenação do agressor, sem o acompanhamento psicológico da vítima, de nada adiantaria; assim como o contrário também não, bem como nenhum efeito surtiria caso ambos acontecessem mas a vítima continuasse a ter direitos fundamentais violados. Daí a necessidade de articulação entre todos os segmentos e atores do Sistema de Garantia de Direitos7.

Entretanto, verifica-se uma primazia, advinda do senso comum, da vertente policial / judicial, considerada como a mais importante, quando não a única a ser acionada. Pensa-se, geralmente, que “o agressor tem que pagar pelo que fez”, e com a condenação do mesmo, outras necessidades normalmente não são pensadas (lembra, aqui, a Lei de Talião – olho por olho, dente por dente: quem comete crime, deve ser preso. E nada mais é cogitado). Por vezes o acompanhamento psicológico é lembrado como necessário, mas mais do que estas duas intervenções não surge rotineiramente no olhar dado aos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. Entretanto, como já sinalizado, há inúmeras outras questões que merecem cuidado.

Diante da ocorrência de uma violação de ordem sexual praticada contra crianças e/ou adolescentes, nasce para este sujeito o direito à restauração total, direito este garantido pela Resolução 60/147 da Assembléia Geral da ONU. Esta restauração total, para ser atingida, demandará a atuação articulada de diversos campos do saber, destacando o Direito, a Psicologia e o Serviço Social, e poderá ocorrer em momentos diversos, em instâncias diversas, e a partir de intervenções diversas.

Entretanto, um equipamento é central em toda essa rede de atuações: as equipes multidisciplinares de atendimento. Normalmente são estas equipes que desenvolvem um acompanhamento por um tempo prolongado, que abarca desde a revelação da violência até a entrada dos diversos atores – polícia judiciária, judiciário, Ministério Público, Conselho Tutelar, saúde, educação, e outros. Ademais, estas equipes também se constituem em espaços especializados para a escuta da criança ou adolescente e seus familiares. Estes dois fatores permitem que as necessidades desta vítima sejam melhor identificadas, levando a uma identificação mais correta do que efetivamente pode ser uma reparação total para aquela vítima. A partir desta identificação, este órgão pode desenvolver ou fomentar as articulações que serão necessárias para o atendimento destas necessidades, abrindo o caminho para a real superação, ponto final da reparação integral. Cabe aqui destacar que a compreensão de reparação integral será a tratada pela Resolução 60/147, que incluirá os aspectos da: restituição da liberdade, convivência familiar e comunitária, e de direitos humanos e civis; compensação por danos econômicos advindos da violência sexual; reabilitação por meio de atendimento médico, psicológico, social e jurídico; satisfação por meio de medidas efetivas da cessação da violência e adequada punição; e garantia da não-repetição da violação sofrida.

Superação da violência sofrida e reparação integral são os grandes objetivos do trabalho de casos de violação sexual contra crianças e adolescentes. Por este motivo, é necessário avaliar como elas têm acontecido na realidade brasileira. Percebe-se, obviamente, que o Direito apresenta-se como o sistema que pode atuar de forma mais incisiva e efetiva para a realização da reparação integral (pelo poder da lei, de suas decisões, efetivando em última instância os direitos garantidos). Exatamente por se apresentar como uma instância primordial decisória e também como uma instância de poder, demanda uma cuidadosa avaliação de sua intervenção nos casos, nos diversos momentos, especialmente para verificar se, de fato, ele efetiva direitos, ou se, para além de não efetivar todos os direitos, ele também realiza violações de direitos.



2 JUSTIFICATIVA



A invisibilidade da vítima criança ou adolescente é o ponto sensível desta pesquisa. Em cinco anos de trabalho como Assessora Jurídica do então Serviço Sentinela do município de Belo Horizonte, substituído depois pelo Centro de Referencia Especializado de Assistência Social – CREAS-BH, inquietava-me a enormidade de discussões públicas em geral acerca dos autores de crimes sexuais contrastando com o completo silêncio no que dizia respeito à vítima e suas necessidades. Era atormentador perceber que a vítima somente aparecia em dois momentos: quando era obrigada a passar pelo atendimento psicossocial público (através da medida de proteção aplicada pelo Conselho Tutelar) e quando tinha que participar, de alguma forma, do processo de responsabilização do agressor – e aqui, fundamentalmente, era encarada simplesmente como instrumento para a condenação do agressor. Diante deste quadro torturador, passei então a questionar qual era o real e devido lugar do Direito para estas crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Onde está de fato e onde deveria estar presente o Direito para eles? E quando se fazia presente, fazia-o de que maneira? Era realmente este o papel do Direito, limitado a condenar o agressor e propiciar o encaminhamento forçado da vítima a atendimento psicossocial?

Ao longo dos anos, percebia que os resultados obtidos no tocante à reparação integral da vítima eram limitados, o que gerou grande frustração pela falta de efetivação de direitos mais amplos de crianças e adolescentes. A rotina apresentava entraves constantes: contínuas reclamações das famílias acerca do tratamento recebido nas delegacias e no judiciário, da dificuldade de acesso ao próprio judiciário, da dificuldade no trabalho com os prazos, às vezes curtos demais, às vezes longos demais, às vezes inexistentes – ou melhor, não cumpridos. Em contrapartida, era recorrente o ar de normalidade acerca de todas estas reclamações. Não eram raras respostas, dos próprios órgãos envolvidos, parecidas com “Isso é normal!”; “É assim mesmo, não tem jeito”; “a lei é assim!”; “processo é burocrático mesmo, demora!”.

A formação em Direitos Humanos e o contato com as famílias – dando a possibilidade de ver, diretamente, os efeitos drásticos deste ar de normalidade e da limitação das intervenções – gerou a inquietação sobre a real atuação que o Direito está desenvolvendo nos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. Foi criada a necessidade de averiguar, de maneira formal, como de fato a intervenção do Direito está ocorrendo em nosso país, trazendo para o meio acadêmico o pensamento crítico acerca de tal intervenção. É, na verdade, uma tentativa de dar visibilidade formal à realidade conhecida, mas ignorada, de forma a suscitar de uma reflexão séria sobre os pontos sensíveis, objetivando abrir caminho para a correção das impropriedades de atuação e uma real concretização da política de proteção integral à criança e ao adolescente.

Para tanto, o passo inicial foi identificar onde mais, além das equipes multidisciplinares de atendimento, havia profissionais do Direito atuando nos casos de violência sexual, em quais momentos e de que maneira se dava esta atuação. Definiu-se, então, a linha mestre da pesquisa. Sabe-se que o Direito, com sua função pacificadora, acaba por ocupar um papel multipresente. A intervenção da lei em seu sentido amplo, através das figuras representativas de autoridade e poder e dos operadores do Direito, ocorrerá inúmeras vezes e de diversas maneiras nos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. Poderá ocorrer pelo advogado ou assessor jurídico que atue nas equipes multidisciplinares de atendimento, dando orientações e esclarecimentos à vítima e suas famílias, e também à própria equipe que realiza o atendimento; poderá ocorrer pela polícia judiciária, ao fazer a investigação do crime praticado contra a criança ou adolescentes; pelo judiciário, ao julgar os processos criminais de responsabilização do agressor e outros de natureza cível voltados para a efetivação de direitos até então violados; pelo Ministério Público, na atuação transversal em todos as ações judiciais e acompanhamento da atuação dos órgãos da instância administrativa (Conselhos Tutelares, por exemplo). Enfim, os operadores do Direito atuarão nos casos de violência sexual em diversos momentos e de diversas formas, sempre sob o lema da função primordial da pacificação, da efetivação de direitos.

Cabe, contudo, problematizar cada uma destas intervenções: será que todas elas ocorrem em consonância com todos os objetivos e garantidas dados pelo próprio Direito? O Direito, nestes casos, intervém respeitando seus fins precípuos e efetivando as garantias dadas por ele próprio, sem violar direitos em nome de proteger outros direitos? E o Direito, afinal, atua efetivamente em prol da vítima, protegendo-a, acolhendo-a, promovendo a sua reparação integral, enfim, enxergando e respeitando esta vítima como de fato ela é? De que ordem é a reparação oferecida à vítima no atual cenário brasileiro?

Alguns pontos críticos da atuação do Direito já são objeto de reflexão. A hipótese é de que Direito atua garantindo efetivando direitos e violando direitos por ação e omissão. Inicialmente, a efetivação de direitos pode ocorrer na forma do atendimento multidisciplinar (com o advogado ou assessor jurídico orientando e equipe articulando o sistema de garantia de direitos para concretizar os direitos abstratamente garantidos), na responsabilização do agente violador e nas decisões judiciais em processos que visão a proteção da vítima (como afastamento de agressor, alteração de guarda e permissão de adoção, por exemplo).

Entretanto, há também a hipótese de que o Direito viola direitos por ação e por omissão. Por omissão, quando deixa de efetivar a reparação integral, o que ocorre nos casos em que os atores do Sistema de Garantia de Direitos sabem das necessidades das vítimas, tomam conhecimento até mesmo direto de tais carências, mas as ações não são desenvolvidas para garantia da reparação integral; e quando a responsabilização do agente violador não é realizada (por exemplo, quando a ação penal é trancada por habeas corpus impetrado por não cumprimento de prazos). Por ação, quando dificulta a participação das crianças no processo; quando coloca a participação como um dever, e não um direito (por exemplo nos casos em que há a ameaça de não prosseguimento da investigação sem o depoimento pessoal da vítima); quando permite a participação da criança ou adolescente, mas de uma forma inadequada (sem capacitar os operadores, sem propiciar meios adequados – ambientes e técnicas –, sem compatibilizar o tempo da criança ou adolescente – enquanto sujeitos em etapa especial de desenvolvimento – com os prazos processuais; sem realizar uma oitiva diferenciada, que se adeque e respeite a condição ímpar de compreensão e desenvolvimento da vítima em questão; sem estabelecer uma forma adequada e compatível de análise do discurso das crianças e adolescentes nos processos).

Estas são problematizações e observações que surgiram a partir da prática profissional já descrita. Entretanto, para dar a elas um caráter científico e melhor delimitação para pesquisa a partir do afastamento do objeto da experiência pessoal, o caminho seria identificar se estas observações se repetem em outro espaço de atendimento, e a partir daí desenvolve-las de forma minuciosa. Para tanto, o melhor caminho passa por um dos atores principais da articulação do Sistema de Garantia de Direitos, que é a equipe multidisciplinar de atendimento. Como geralmente esta equipe acompanha um caso desde sua ocorrência até a superação, é o ponto da rede que apresenta as melhores condições de avaliar como um todo as intervenções que o caso sofreu pelos diversos atores. Assim, será feita a escolha de um caso paradigmático, bem sucedido ou não, mas que tenha passado por um acompanhamento robusto pela equipe. No estudo deste caso com a equipe, o objetivo será identificar como o Direito permeou o desenvolvimento de todo o caso, desde a atuação do advogado orientando a equipe e a família, até a entrada dos demais atores do sistema de garantia de direitos a partir da articulação provocada pela equipe e também a partir do movimento da própria família. Especial atenção será dada à atuação da polícia judiciária, Ministério Público e Judiciário no trabalho do caso, para avaliar se foram ou não supridas as necessidades daquele caso, e se alguma das hipóteses levantadas anteriormente foram concretizadas neste caso.

A equipe multidisciplinar escolhida para este trabalho é o Núcleo de Atendimento a Vítimas de Crimes Violentos – NAVCV, instituição que atua na cidade de Belo Horizonte – MG a qual conheci durante o meu trabalho no Sentinela-BH e CREAS-BH. Com uma proposta sólida de atendimento, experiência reconhecida no município e atuação destacada e especializada, mostrou-se como o melhor local para desenvolvimento da inicial da pesquisa. A partir deste mapeamento inicial na instituição, e depois de constatada a ocorrência garantidora e violadora de direitos pela atuação do próprio Direito, os demais atores serão entrevistados para dizerem sobre esses “nós”; os pontos de embaraço, de violação de direitos, serão isolados e os operadores convocados a dizer do tratamento concreto dado àquelas questões controvertidas no cenário atual do país.

Algumas destas questões já receberam um tratamento superficial da doutrina jurídica, mas não foi localizado nenhum estudo específico que procurasse, de fato, apontar e detalhar claramente como o Direito, principal campo de proteção, acaba por violar direitos em sua própria atuação em diversos momentos. As questões são sempre tratadas de forma individual, prejudicando a constatação da gravidade que pode permear este quadro na realidade.

A inadequação do sistema processual brasileiro à realidade das crianças e adolescentes vítimas é afirmada, por exemplo, por Cezar (2007, p.51), que aponta para a normativa geral de produção de provas em juízo sem contemplar modelos diversos para inquirir crianças e adolescentes. Diz este autor que a justiça penal permanece, quase que integralmente, na busca pela condenação do agente violador, e para tanto alterna momentos em que ora trata “a criança com insensibilidade, ora desconsiderando-se a sua condição de pessoa em desenvolvimento, que está atormentada e confusa”. Esta inadequação perpassa, também pela falta de capacitação dos operadores do sistema justiça – que gera a revitimização, como afirma Cezar (2007, p.18) – e também a falta de espaços físicos adequados das salas de audiências, espaços estes não projetados para acolher este público específico, além de acolher pessoas estranhas à vítima e que quase sempre se mostram inamistosas a ela (CEZAR, 2007, p.19).

A dificuldade na recepção e análise do discurso de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, ora exigindo um depoimento extremamente preciso e minucioso, ora tratando o relato como ato de fantasia, é tratada por dois autores. Volnovich (2005, p.41) aponta para a existência de preconceitos adultomórficos que exigem da criança ou adolescente vítima um discurso lógico como o desenvolvido por um adulto, partindo da idéia de que entre o adulto testemunha e a criança ou adolescente testemunha há uma simetria. Dobke (2001, p. 37) por sua vez apresenta a afirmação de que


[...]como regra, as crianças fantasiam, mentem, são vulneráveis a sugestões, incapazes de separar a realidade de seus desejos sexuais, etc. Na verdade, a verdadeira justificativa para não-validação da versão é o próprio sentimento dos adultos que não suportam admitir que seus semelhantes possam praticar tamanha violência contra os indefesos.


Complementa Furniss (1993, p.30) dizendo que “os códigos legais inteiros são construídos sobre a noção, até agora não comprovada, de que as crianças mentem, e os adultos falam a verdade, ou de que as comunicações das crianças são menos válidas ou menos confiáveis que as declarações dos adultos”.

Acerca da possível incompatibilidade do tempo da criança ou adolescente vítima ao tempo do Direito, Cezar (2007, p. 47) invoca a dificuldade recorrente que muitas pessoas apresentam para entender a razão pela qual muitas vezes a violência sexual é praticada por longos períodos sem que a vítima consiga revelar sua ocorrência. Apresenta as várias razões para isso, como:


- Ameaças, físicas ou psicológicas, que fazem com que a criança tema por si, por sua família ou por alguém por quem nutre afeto;

- Crianças mais novas, que não possuem conhecimento das coisas do sexo, podem ver o abuso sexual como algo normal, e, portanto, não se sentem impelidas a relatar o ocorrido;

- Distorção da realidade – o abusador manipula a realidade da criança de modo que ela sinta que é a abusadora, e ele, a vítima, conseguindo, assim, alterar, pelo menos psicologicamente, os papéis que cada um exerce na ação;

- Medo da perda da atenção do abusador, pessoa que a seduziu e por quem nutre afeto;

- Medo da punição pela ação que participou;

- Medo de que não acreditem nela e que por isso possam puni-a pela mentira;

- Culpa pela ação que participou – não no sentido legal, mas no sentido psicológico – eis que queira ou não, está a criança ligada à interação abusiva, ainda que participando de forma passiva. A criança equivoca-se, pensando ter participado ativamente do abuso e também ser responsável por sua ocorrência;

- Falta de evidência médica acerca do abuso.


Em suma, a temática da violência sexual de crianças e adolescentes, como um todo, acaba não entrando em discussão no campo do Direito. Poucas são as produções que tratam do tema segundo a visão do Direito – à exceção dos livros dedicados ao comentário das previsões contidas no Código Penal. Os nós da prática, os limites de atuação do Direito, as dificuldades no trabalho de casos pelo campo jurídico acabam não surgindo na doutrina e no meio acadêmico. Um excelente demonstrativo é o número de dissertações e teses dedicadas a esta temática no campo do Direito. Em pesquisa ao acervo de teses e dissertações da USP, foi localizada apenas uma dissertação de mestrado que abordava o tema da violência sexual na área do Direito8, o que demonstra a necessidade de estudos sobre o tema nesta área do conhecimento.



3 OBJETIVO


O objetivo da pesquisa é identificar e analisar como o Direito, através de seus diversos operadores, intervém nos casos de violência sexual contra crianças ou adolescentes efetivando ou violando direitos das vítimas por ação ou omissão.



4 HIPÓTESES



I – O Direito atua efetivando direitos de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual quando, na forma do atendimento multidisciplinar, o advogado orienta a equipe de atendimento e auxilia na articulação de ações diversas entre Sistema de Garantia de Direitos para concretizar os direitos abstratamente garantidos a crianças e adolescentes. Também o faz quando, através do Judiciário e Ministério Público, propicia a responsabilização (condenação) dos agentes violadores e obtém sentenças favoráveis à proteção das vítimas (como nos casos de determinação de afastamento de agressor, alteração de guarda e autorização para adoção).


II – O Direito atua violando direitos de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual por ação e por omissão. Por omissão quando deixa de efetivar a reparação integral (ao tomar conhecimento das necessidades das vítimas e não realizar as ações visando a satisfação destas); e quando não realiza a responsabilização (em razão do descumprimento de prazos, ensejando o trancamento das ações penais por hábeas corpus). Por ação, quando dificulta a participação das vítimas no processo; quando coloca a participação como um dever, e não um direito; e quando permite a participação, mas de uma forma inadequada (sem capacitar os operadores; sem propiciar os meios adequados; sem compatibilizar a legislação processual ao tempo da criança e do adolescente; sem realizar uma oitiva diferenciada; sem estabelecer uma forma adequada de análise do discurso das crianças pelo judiciário).



5 MATERIAIS E MÉTODOS



A pesquisa será iniciada com o estudo de um caso atendido pelo NAVCV, e considerado pela equipe como paradigmático. Este estudo buscará identificar os pontos nos quais o Direito realizou intervenção no caso, determinando em quais deles houve efetivação e em quais houve violação de Direitos das crianças e adolescentes vítimas atendidas.

Delimitados os pontos, serão realizadas entrevistas direcionadas para detalhar exatamente como tais intervenções garantidoras e violadoras vem sendo tratadas e compreendidas pelos operadores do Direito nos diversos espaços, de forma genérica (e não atrelada ao caso em si). Serão realizadas entrevistas com a equipe do NAVCV; Delegada Titular da Delegacia Especializada de Proteção da Criança e do Adolescente – DEPCA; Promotor e Juiz da Vara da Infância e Juventude; e Promotor e Juiz da Vara Criminal com competência para julgar crimes de violência sexual contra crianças e adolescentes.

O produto das entrevistas será analisado em confronto com a doutrina jurídica e legislações em vigor para apontar o que é violador e o que é efetivador de direitos. Se possível, para os pontos violadores serão apontadas possíveis soluções.



6 CRONOGRAMA


[Março/2011; Julho/2012] – Cumprimento dos créditos obrigatórios;

[Março/2011; Dezembro/2011] - Revisão do projeto de pesquisa; coleta de material bibliográfico e outros elementos de pesquisa principais;

[Julho/2011; Dezembro/2011] – Compilação do material bibliográfico e entrevista inicial com o NAVCV;


[Janeiro/2012 ; Março/2012] - Entrevista específica com NAVCV, Delegados, Promotores e Juízes; compilação do material das entrevistas.


[Março/2012 ; Junho/2012] – Compilação de bibliografia básica, bibliografia adicional e dados colhidos (registrados);


[Julho/2012] – Exame de qualificação;


[Agosto/2012 ; Fevereiro/2013] – Conclusão da dissertação

[Março/2013] – Defesa da dissertação




Data de matrícula: 20/01/11

Prazo máximo para inscrição no Exame de Qualificação: 20/01/12

Data limite: 20/0/14


REFERÊNCIAS


BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama e Claúdia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.


BRASIL. Lei 8.069, de 13 de Julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente.


CEZAR, José Antônio Daltoé. Depoimento sem dano: uma alternativa para inquirir crianças e adolescentes nos processos judiciais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.


DOBKE, Veleda. Abuso sexual: A inquirição das crianças, uma abordagem interdisciplinar. Porto Alegre: Ricardo Lenz Editor, 2001.


FURNISS, Tilman. Abuso Sexual da Criança: Uma Abordagem Multidisciplinar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.


ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução 40/34, Adotada pela Assembléia Geral do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, em 29 de Novembro de 1985. Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder Disponível em: <http://www.espacomulher.com.br/ead/aula/vitimologia.pdf>. Acesso em: 09 out. 2010.


____________ . Princípios e Diretrizes Básicos Sobre o Direito das Vítimas de Violações das Normas Internacionais de Direitos Humanos e do Direito Internacional Humanitário a Interpor Recursos e Obter Reparações - Resolução 60/147, Adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas para os Direitos Humanos, em 16 de Dezembro de 2005. Disponível em: . Acesso em: 09 out. 2010.


VOLNOVICH, Jorge Ruben (Org.). Abuso sexual na Infância. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2005.


1 Conforme exposição introdutória de Cezar (2007, páginas 17 e 21).

2 O objetivo deste Código era apenas dar tratamento à questão dos menores de dezoito anos que não eram acolhidos por um núcleo familiar, de forma a exercer firme controle sobre eles. Para estes, inexistiam garantias processuais básicas como a ampla defesa e a presunção de inocência sob o argumento de se tratar do superior interesse do menor – definido pelo judiciário em cada caso. Por tudo isso, surgiu a idéia do “menor” como sinônimo de infância pobre e potencialmente perigosa.

3 Na qual houve a criação da Política Nacional do Bem-Estar do Menor, que tinha como órgão gestor nacional a FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor) e órgão executor estadual a FEBEM (Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor).

4 Prevê o artigo 227 que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

5 Os crimes que traduzem os vários tipos de violência sexual estão elencados em sua maioria no Título VI do Código Penal (que trata dos crimes contra a dignidade sexual), no Título VII do Estatuto da Criança e do Adolescente (que trata de crimes em espécie criados por este estatuto para criminalizar situações que o texto do Código Penal não conseguia abarcar).

6 Conforme previsão dos artigos 101 e 109 do Estatuto da Criança e do Adolescente

7 É o conjunto articulado de pessoas e instituições que atuam para efetivar e garantir os direitos da criança e do adolescente. Trabalha em três eixos: Promoção (formulação de políticas públicas, exercida em grande parte pelos Conselhos de Direitos, a partir de deliberação e controle de ações para efetivação de direitos); Defesa (responsabilização do Estado, família e sociedade, exercida pelo Judiciário, Defensoria Pública, Ministério Público, Conselho Tutelar, Centros de Defesa, dentre outros); e Controle Social (vigilância dos preceitos legais, exercida pelos Fóruns sociais, movimentos e espaços de discussão em geral).


8 KAMIMURA, Akemi. A efetivação dos direitos humanos: o desafio do direito no atendimento interdisciplinar a vítimas de violência. 2009. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Ressalta-se que esta dissertação não teve o recorte da violência sexual, apesar de perpassar pelo mesmo.

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