sexta-feira, 27 de abril de 2012

Um registro da defesa de Lisandra Ogg Gomes


A pesquisadora Lisandra Ogg Gomes, da Faculdade de Educação da USP e integrante do GPS, defendeu nesta sexta-feira, dia 27, a sua tese de doutorado de título “Particularidades da infância na complexidade social: um estudo sociológico acerca das configurações infantis”.

A banca foi coordenada pela orientadora Maria da Graça Jacintho Setton (FE-USP) e contou com a participação de especialistas em temas que cruzam o trabalho, pesquisados sob a ótica dos processos de socialização: Claudia Vianna (FEUSP), Maria Leticia (FEUSP), Rita Ribes (UERJ) e Maria Alice Nogueira (UFMG).

Maria Alice Nogueira ressaltou a qualidade do trabalho. “É um material consistente, denso  e traz uma bibliografia imponente que me impressionou. Além disso, é um material original de um campo novo, a sociologia e infância”, disse. “Metodologicamente, também faz uma contribuição grande, com um campo vasto e trabalhoso”, concluiu.

Rita Ribes ressaltou a boa escolha de ter como ponto de partida a simplicidade e citou Clarice Lispector. “A escritora tem uma frase em que diz ‘Ninguém se engane. A simplicidade é fruto de muito trabalho’. Seu mérito é perceber a complexidade que está neste simples”, disse a professora. Ao tecer as suas considerações, ela ressaltou a grandeza do campo e a densidade teórica do trabalho.

Claudia Vianna enalteceu o avanço do trabalho desde a qualificação e o cuidado na escrita: “É raro um trabalho que traz o campo o tempo todo, dialogando com a teoria. O texto tem esta ousadia. Além disso, é delicioso e prazeroso, de muita qualidade. Um trabalho artesanal”, disse a professora, citando Mills.

A professora Maria Leticia Nascimento elogiou o intercâmbio que aconteceu no percurso do trabalho. “Lisandra participou do grupo de estudos que coordeno, eu fui ao GPS conversar com os alunos, e a tese reflete esta troca”, disse, agradecendo a oportunidade de estar em diálogo com a pesquisadora. Ela reforçou os elogios ao trabalho teórico da tese “São muitos campos muito bem representados, com textos que vão dos clássicos aos contemporâneos. Não é fantástico lançar mão de tantas questões para entender um grupo de crianças? Este é o grande sentido dos estudos de sociologia da infância. Trazer esta complexidade à tona”, afirmou. Por fim, ela ressaltou que seria de grande valia para quem trabalha com sociologia da infância que a tese fosse publicada como livro.

Ao final de cada exposição, Lisandra comentou as principais questões apontadas pelas professoras integrantes da banca. Após as exposições e comentários, a professora Graça Setton teceu algumas considerações, agradecendo a colaboração de todos e afirmando que foi uma grande satisfação acompanhar o trabalho.

As integrantes da banca deliberaram pela aprovação da pesquisadora com recomendação enfática de publicação da tese em formato de livro.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Agenda de abril de 2012

Confira as próximas atividades e encontros do Grupo de Pesquisa Práticas de Socialização Contemporâneas:

17 de abril
Encontro do GPS
Discussão Tese de Doutorado Lisandra Gomes
Título - Particularidades da Infância na complexidade social - um estudo sociológico acerca das configurações infantis.
Às 17:30 horas
Faculdade de Educação da USP

Dia 20 de abril
Palestra Leituras sobre Norbert Elias
Palestra Profa. Graça Setton
Escola Superior de Propaganda e Marketing
R. Álvaro Alvim, 123, na Vila Mariana
Às 14 horas

Dia 27 de abril
Defesa de Tese Lisandra Ogg Gomes
Título - Particularidades da Infância na complexidade social - um estudo sociológico acerca das configurações infantis.
Sala 114 - Bloco B - Faculdade de Educaçào da USP
Às 10 horas

Outras datas importantes

Até 12 de abril
Inscrições de trabalhos para a 35ª Reunião anual da ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação)
Saiba mais: http://35reuniao.anped.org.br

De 25 a 27 de julho
III Colóquio Luso-Brasileiro de Sociologia da Educação (na UFRJ)
Prazo de inscrição de trabalhos encerrado.
Saiba mais: http://www.coloquiolusobrasileiro.com

Veja também:

Texto da palestra "A interiorização silenciosa das disposições de habitus" - proferida pela Profa. Maria da Graça Jacintho Setton no
I Congresso Pan-Amazônico e VII Encontro da Região Norte de História Oral - História do Tempo Presente & Oralidades na Amazônia, que aconteceu entre os dias 27 e 30 de março de 2012, na Universidade Federal do Pará (UFPA).

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Palestra: A interiorização silenciosa das disposições de habitus

I Congresso Pan-Amazônico e VII Encontro da Região Norte de História Oral - História do Tempo Presente & Oralidades na Amazônia que acontecerá do dia 27 a 30 de Março de 2012, na UFPA.



Título: A interiorização silenciosa das disposições de habitus

Maria da Graça Jacintho Setton


Bom dia a todos

É com grande satisfação que aceitei o convite de estar partilhando esta mesa com o Prof. Celson e a a Profa. Lia Vieira Braga

Gostaria de agradecer também ao Prof. Petit por essa oportunidade.


O que trago para vcs aqui é uma reflexão, entre outras, que venho travando com meus alunos do Programa de Pós-Graduação em Educação, no interior do grupo de pesquisa Praticas de Socialização Contemporânea, coordenado por mim, na Faculdade de Educação da USP, acerca das estratégias de socialização, mas especificamente as estratégias pouco visíveis e silenciosas da educação.

A pesquisa que deu ensejo a essa discussão, refere-se a uma Iniciação Científica, realizada por uma graduanda em Pedagogia, da FE-USP; tal estudo se insere ainda no escopo de investigações realizadas que conta com um trabalho de mestrado e de doutorado, acerca de outras disposições de habitus como às relativas à religiosidade e à sexualidade, ambas, com base em estratégias difusas e ocultas de socialização. Portanto, passam notadamente, pelo exercício da oralidade não sistemática.


O que trago aqui então são aspectos relativos ao processo de transmissão difusa de disposições de cultura. Trata-se de uma investigação que procura dialogar com a teoria disposicionalista empreendida por Pierre Bourdieu e Bernard Lahire, entre outros, com a intenção de observar e aprofundar conhecimentos sobre estratégias socializadoras pouco investigadas e muitas vezes involuntárias capazes de construir disposições de habitus.

Preparei uma apresentação montada em três momentos.

No primeiro deles vou justificar epistemologicamente esta problemática;

Em seguida, vou me ater aos mecanismos fundamentais que possibilitam o processo de transmissão e incorporação de valores de natureza imaterial e,

Por ultimo, vou me debruçar sob as condições de possibilidade de sucesso destes processos.


Assim sendo, valeria iniciar observando que dentre os estudiosos que se ocupam dos processos socializadores, as reflexões acerca das estratégias difusas e insensíveis na formação das disposições de habitus ainda são pouco expressivas.

Grande parte da produção socioantropológica sobre o assunto acaba por pressupor sem verificação empírica, mecanismos relativos à impregnação cultural, que embora relevantes, pouco nos auxiliam na sistematização teórica de como eles se realizam. Com base nessas observações, e com o intuito de aprofundar os conhecimentos na área, nossa equipe de pesquisa realizou uma investigação no banco de teses e dissertações da Capes, em um período de aproximadamente vinte anos (1990-2009) acerca dos processos de construção das práticas alimentares.

Parto do pressuposto que os hábitos alimentares são um bom exemplo de práticas culturais apreendidas de maneira insensível, desde a mais tenra infância, no seio da socialização primária, predominantemente realizadas nas relações educativas não formais e não intencionais, no entanto, capazes de deixar marcas profundas nas disposições de gosto dos indivíduos.

A partir daí, dialogando com as contribuições de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire, busquei compreender melhor os mecanismos pelos quais as disposições de cultura são transmitidas e incorporadas mesmo quando não se tem a intenção explícita de educar/socializar em certa direção.

Trata-se de um empreendimento exploratório, inédito, contudo necessário, para avançar nas questões teóricas relativas aos processos socializadores.

Segundo Lahire, a teoria sociológica há certo tempo passa por um estado de letargia aceitando sem questionamentos a teoria disposicionalista tradicional. Ou seja, Lahire nos incita a apontar os meios mais adequados para se identificar aspectos ocultos dos processos socializadores construindo um olhar sobre a realidade da construção das disposições de habitus.

Admite que Bourdieu registrou o maior esforço de explicitação em matéria da teoria disposicionalista, contudo, concordando com Lahire, como habitualmente estamos acostumado a esse vocabulário, supomos saber o que é uma disposição ou um esquema ou uma fórmula geradora de práticas, mas na realidade não sabemos como elas se realizam.

De acordo com Lahire, a disposição de cultura é uma realidade que deve ser observada diretamente pelo cientista social. Ela pressupõe a realização de um trabalho empírico e interpretativo para identificar comportamentos, práticas e representações. Trata-se de fazer aparecer os princípios ou estratégias que geram a natureza da incorporação de uma diversidade de práticas e gostos.

Nesse sentido, inspirando-me nas proposições críticas do autor, julgo que as noções de disposição e transferibilidade devem ser melhor esclarecidas a fim de poder avançar na compreensão das estratégias socializadoras, em especial aquelas difusas e ocultas do social.

Por outro lado, para Bourdieu, disposições de cultura exprimem, em primeiro lugar, o resultado de uma ação cognitiva e organizadora das mentes, apresentando um sentido próximo ao de palavras como estrutura; designa uma maneira de ser, um estado habitual (em particular do corpo) e, sobretudo, uma predisposição, uma tendência, propensão ou inclinação construídas ao longo dos processos socializadores, às vezes à custa de dores e sofrimento individual.

Segundo Bourdieu, na expectativa de reconhecimento ou de obediência as exigências de um espaço social específico, os agentes ver-se-iam muitas vezes predispostos a agir segundo as demandas exteriores. A ação social seria, portanto, produto de um sentido prático, um ato realizado a partir das injunções de cobranças de um contexto cultural singular. Neste sentido, disposição cultural para Bourdieu, refere-se a um conjunto de esquemas classificatórios, apreendidos de maneira sistemática ou de maneira difusa no seio da família ou no interior de instancias produtoras de valores morais e comportamentais com forte poder formador e identitário.

Numa tentativa de definição, Bourdieu afirma que disposição é exposição. É porque o corpo é exposto, posto em perigo no mundo e constantemente confrontado com o risco da emoção, que se vê obrigado a levar o mundo a sério. Segundo ele, aprendemos com o corpo. A ordem social inscreve-se nos corpos através desta confrontação permanente, mais ou menos dramática, mas que dá sempre grande lugar à afectividade e, mais precisamente, às transacções afectivas com o meio ambiental social.

Para os interesses desta discussão, proponho então, agora, já na segunda parte desta palestra sistematizar uma orientação de verificação empírica acerca das estratégias pouco evidentes de construção das identidades sociais. Espero mobilizar conceitos, autores e uma sensibilidade do olhar para estudos sobre processos socializadores difusos e pouco sistemáticos.

Reitero que o desenvolvimento de uma sociologia da socialização implica que a noção de disposição seja central nestas investigações e para se compreender totalmente uma disposição precisamos reconstituir sua gênese, ou seja, suas condições ou modalidades de formação.


É possível afirmar que além de teóricos como Pierre Bourdieu e Bernard Lahire, Peter Berger e Thomas Luckamann (1983), contribuem nas reflexões desenvolvidas acerca dos processos socializadores. Partindo do ponto de vista da sociologia do conhecimento estes autores oferecem um conjunto de aspectos que devem e poderiam ser somados aos auxílios já registrados na área.

Mais especificamente, para Peter Berger e Thomas Luckmann a transmissão de um patrimônio cultural imaterial e ou a incorporação de um acervo de conhecimentos de uma coletividade, entre eles, as disposições relativas às práticas alimentares (sexuais e ou religiosas), devem ser compreendidos como uma eterna produção de sentidos realizada na e pela interação simbólica entre grupos e individuos.

Esta perspectiva permite apreender o processo de constituição das disposições culturais, ou seja, a construção dos esquemas mentais e comportamentais dos sujeitos tendo como base a reciprocidade, a troca e a interação entre indivíduos. Segundo esta perspectiva, o mais íntimo dos traços de personalidade ou dos comportamentos, as mais íntimas das práticas só podem ser apreendidos se detectarmos a rede de relacionamentos, a configuração social e simbólica de indivíduos e seus semelhantes.

Para uma larga tradição sociológica, as condições de existência são na realidade condições de coexistência.

Nesta linha de raciocínio, perguntamos então, como se formam as disposições alimentares ou demais esquemas de ação naturalizados, tal como os relativos à sexualidade, à música ou à religiosidade?

Poderiam os hábitos precocemente interiorizados de maneira difusa, e em condições favoráveis ou não à sua boa incorporação, dar lugar aquilo que chamamos de gosto, desejo ou paixão? (LAHIRE, 2002).

Partindo dessas questões, penso que devemos privilegiar dois momentos


Em primeiro lugar devemos recuperar as modalidades e as práticas das situações de transmissão e incorporação das heranças disposicionais e entre elas destaco a importância da linguagem e a reiteração dos sentidos desta linguagem

Em segundo lugar devemos considerar as condições de possibilidade, os alcances e limites delas, ou seja, a questão da autoridade e os aspectos legitimadores que envolvem essas práticas.


Em relação ao aspecto da linguagem, enquanto modo de transmissão/incorporação, seria importante retomar a máxima teórica proposta por Berger e Luckmann, qual seja, a linguagem é responsável pela comunicação entre o eu e o outro, e por extensão os sistemas simbólicos, suas categorias do pensamento e julgamento, tornam real e objetivo o mundo, dão sentido ao nosso mundo.

Enquanto sistema de sinais e significados apreendidos desde a mais tenra infância, a linguagem falada e ou gestual torna significativa as práticas e os comportamentos sociais, fornecendo inexoravelmente uma forma de apresentação do mundo.

Esta apresentação não é neutra, exerce como desdobramentos, efeitos coercitivos, forçando a todos a entrar em seus padrões de comportamento e representação.

Em outras palavras, qualquer tema significativo que a linguagem abranja reiteradamente – entre eles as disposições alimentares - poderá ser definido como um símbolo a ser seguido e tomado como evidente e natural. Em virtude de sua acumulação este acervo social do conhecimento pode ser transmitido de geração a geração estabelecendo zonas de compreensão e convívio, elementos fundamentais para o uso em situações de rotina, tipificando individualidades, modelos de conduta e disposições de habitus etc.


O ritual da repetição e a legitimação de uma verdade


Não obstante, para Berger e Luckmann, os processos de construção simbólica do mundo, por estarem sempre em constante edificação necessitam de reforço contínuo. No que se refere às práticas alimentares, estratégias conscientes e inconscientes – a rotina das refeições, os rituais festivos familiares ou grupais, - auxiliam o homem a fornecer a si mesmo um ambiente estável para sua conduta, tipificando ações e sedimentando tradições.

Sendo instável, o processo de construção simbólica precisa todo tempo ser legitimado, explicado, justificado como tradição para as novas gerações. Para os mais jovens a memória da origem da instituição alimentar é inexistente, portanto as tradições servem como justificativas, e devem ser reiteradas para todas as novas gerações, criando um correspondente manto de legitimações que garante sua reprodução.

Neste sentido, o conhecimento expresso do que é próprio ou impróprio ao consumo alimentar ou ao comportamento sexual, ajuda a construir uma realidade, ordenando este mundo em objetos e praticas que serão apreendidos como realidade; e, em seguida, é interiorizado na forma de disposição como verdade.


Assim sendo, quanto mais importante esse acervo de conhecimento culinário (ou sexual) para a preservação da memória e estabilidade do grupo, mais cuidadoso será esse processo de fixação e legitimação; mais atentas serão as estratégias de sedimentação e reiteração de uma tradição alimentar (ou sexual). Não é fortuito o fato de comunidades migrantes reforçarem os laços de pertença a partir de memórias de um alimento comum (ou a memória dos laços familiares).


As condições de possibilidades


Indo para a terceira e ultima parte desta apresentação, eEntretanto, se até agora apresentamos as estratégias lingüísticas e cognoscitivas de transmissão de um corpo de símbolos e valores imateriais, cumpre agora considerar as condições de possibilidade que viabilizam os processos de incorporação de disposições de cultura, que embora sejam pouco perceptíveis, revelam-se poderosas e insidiosas.

Em primeiro lugar valeria reiterar que o período de contato e aprendizagem da linguagem se realiza fundamentalmente na ocasião da socialização primária, período de formação de nossa inicial compreensão do mundo. É nesse momento em que o conjunto de conceitos ou categorias do julgamento serve de elemento integrador do eu com o outro, mas sobretudo também, momento no qual se estabelece um diálogo interno entre objetividade social e a subjetividade dos individuos.

O acervo de conhecimentos que deriva de um universo simbólico específico de cada cultura adquirido na primeira infância é responsável pela constituição de uma identidade pessoal e grupal difícil de ser rompida e ou desacreditada. Nesse sentido, os ensinamentos adquiridos primariamente, entre eles os alimentares ou sexuais, são aqueles mais profundamente arraigados e constitutivos de nossa visão acerca do mundo e de nós mesmos.

Como segunda condição de possibilidade que assegura a permanência de certos aspectos de uma cultura imaterial, lembraria a regularidade em que elas se apresentam. Se primeiramente, destaquei que as disposições alimentares apreendidas na pequena infância, são insidiosas estratégias de construção de uma identidade, associada a elas, teríamos o esforço continuado de vivenciar estímulos relativos a elas em mais de uma ocasião no cotidiano.

Ou seja, o ato de comer, o que comer e seu preparo revelam idiossincrasias grupais que são continuamente repetitivas, seja em grupo ou individualmente.

A regularidade destas práticas expressa uma assertiva sobre a identidade de um coletivo, reforça sem conflito ou divergência, um gosto ou disposição a um estilo determinado de como e o quê comer. Tempo, regularidade, freqüência, rotina, são algumas noções que expressam condições sociais favoráveis à construção de sentimentos identitários; trabalham a favor de uma orquestração de sentidos em que evidencias exteriores compõem representações acerca de uma individualização.

Não obstante, nem a linguagem nem a reiteração de valores culturais teriam força suficiente se não contassem com os recursos de um sentido de autoridade que perpassam todos eles. Seria necessário pois compreender as funções de domínio dos guardiões da herança cultural alimentar ou identitária.

Como bem lembraria Berger e Luckmann o processo de socialização primária se realiza com sucesso na maioria das vezes devido à forte carga afetiva entre socializados. Interiorizamos e nos identificamos com o mundo exterior pois necessitamos de um reconhecimento de nossos pares, em especial um reconhecimento dos outros que nos são significativos.

Os indivíduos incorporam o social sob a forma de afetos na valorização negativa ou positiva de prescrições ou enunciações performativas. O tom de voz, os silêncios, olhares e gestos sinalizam sutilmente uma ordem ou uma chamada à ordem social. As condições de eficácia dessas prescrições simbólica e silenciosamente transmitida estão duradouramente inscritas nos corpos.

Ademais, a autoridade e ou domínio legitimado dos portadores de uma herança cultural, entre elas a alimentar ou sexual, são elementos que revelam condições de aceitação e adaptação dos mesmos.

Contudo, como bem alertou Berger e Luckmann (1983), a bagagem transmitida no período de socialização primária não são imutáveis. Estão profundamente arraigadas em nosso inconsciente identitário, mas podem ser remodeladas desde que condições específicas de socialização permitam sua revalidação ou alteração. Em trajetórias migratórias ou de transformação social podemos observar mecanismos de reforço dos laços pela cultura grupal, em que aspectos da alimentação podem se tornar vigorosas estratégias identitárias. Ao contrário, em condições de pluralidade cultural podemos identificar táticas de distinção e ou de hibridismo na construção das disposições de cultura, abrindo espaço para uma variedade de apreciações no âmbito das praticas alimentares, dentre uma multiplicidade de outras práticas.

Não obstante, ainda que ambos sejam aspectos importantes, não se poderia abordá-los nos limites dessa apresentação; servem, contudo, como lembrete ou convite para próximas investigações.

Muito obrigada pela atenção.

Palestra: A interiorização silenciosa das disposições de habitus

I Congresso Pan-Amazônico e VII Encontro da Região Norte de História Oral - História do Tempo Presente & Oralidades na Amazônia que acontecerá do dia 27 a 30 de Março de 2012, na UFPA.



Título: A interiorização silenciosa das disposições de habitus

Maria da Graça Jacintho Setton


Bom dia a todos

É com grande satisfação que aceitei o convite de estar partilhando esta mesa com o Prof. Celson e a a Profa. Lia Vieira Braga

Gostaria de agradecer também ao Prof. Petit por essa oportunidade.


O que trago para vcs aqui é uma reflexão, entre outras, que venho travando com meus alunos do Programa de Pós-Graduação em Educação, no interior do grupo de pesquisa Praticas de Socialização Contemporânea, coordenado por mim, na Faculdade de Educação da USP, acerca das estratégias de socialização, mas especificamente as estratégias pouco visíveis e silenciosas da educação.

A pesquisa que deu ensejo a essa discussão, refere-se a uma Iniciação Científica, realizada por uma graduanda em Pedagogia, da FE-USP; tal estudo se insere ainda no escopo de investigações realizadas que conta com um trabalho de mestrado e de doutorado, acerca de outras disposições de habitus como às relativas à religiosidade e à sexualidade, ambas, com base em estratégias difusas e ocultas de socialização. Portanto, passam notadamente, pelo exercício da oralidade não sistemática.


O que trago aqui então são aspectos relativos ao processo de transmissão difusa de disposições de cultura. Trata-se de uma investigação que procura dialogar com a teoria disposicionalista empreendida por Pierre Bourdieu e Bernard Lahire, entre outros, com a intenção de observar e aprofundar conhecimentos sobre estratégias socializadoras pouco investigadas e muitas vezes involuntárias capazes de construir disposições de habitus.

Preparei uma apresentação montada em três momentos.

No primeiro deles vou justificar epistemologicamente esta problemática;

Em seguida, vou me ater aos mecanismos fundamentais que possibilitam o processo de transmissão e incorporação de valores de natureza imaterial e,

Por ultimo, vou me debruçar sob as condições de possibilidade de sucesso destes processos.


Assim sendo, valeria iniciar observando que dentre os estudiosos que se ocupam dos processos socializadores, as reflexões acerca das estratégias difusas e insensíveis na formação das disposições de habitus ainda são pouco expressivas.

Grande parte da produção socioantropológica sobre o assunto acaba por pressupor sem verificação empírica, mecanismos relativos à impregnação cultural, que embora relevantes, pouco nos auxiliam na sistematização teórica de como eles se realizam. Com base nessas observações, e com o intuito de aprofundar os conhecimentos na área, nossa equipe de pesquisa realizou uma investigação no banco de teses e dissertações da Capes, em um período de aproximadamente vinte anos (1990-2009) acerca dos processos de construção das práticas alimentares.

Parto do pressuposto que os hábitos alimentares são um bom exemplo de práticas culturais apreendidas de maneira insensível, desde a mais tenra infância, no seio da socialização primária, predominantemente realizadas nas relações educativas não formais e não intencionais, no entanto, capazes de deixar marcas profundas nas disposições de gosto dos indivíduos.

A partir daí, dialogando com as contribuições de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire, busquei compreender melhor os mecanismos pelos quais as disposições de cultura são transmitidas e incorporadas mesmo quando não se tem a intenção explícita de educar/socializar em certa direção.

Trata-se de um empreendimento exploratório, inédito, contudo necessário, para avançar nas questões teóricas relativas aos processos socializadores.

Segundo Lahire, a teoria sociológica há certo tempo passa por um estado de letargia aceitando sem questionamentos a teoria disposicionalista tradicional. Ou seja, Lahire nos incita a apontar os meios mais adequados para se identificar aspectos ocultos dos processos socializadores construindo um olhar sobre a realidade da construção das disposições de habitus.

Admite que Bourdieu registrou o maior esforço de explicitação em matéria da teoria disposicionalista, contudo, concordando com Lahire, como habitualmente estamos acostumado a esse vocabulário, supomos saber o que é uma disposição ou um esquema ou uma fórmula geradora de práticas, mas na realidade não sabemos como elas se realizam.

De acordo com Lahire, a disposição de cultura é uma realidade que deve ser observada diretamente pelo cientista social. Ela pressupõe a realização de um trabalho empírico e interpretativo para identificar comportamentos, práticas e representações. Trata-se de fazer aparecer os princípios ou estratégias que geram a natureza da incorporação de uma diversidade de práticas e gostos.

Nesse sentido, inspirando-me nas proposições críticas do autor, julgo que as noções de disposição e transferibilidade devem ser melhor esclarecidas a fim de poder avançar na compreensão das estratégias socializadoras, em especial aquelas difusas e ocultas do social.

Por outro lado, para Bourdieu, disposições de cultura exprimem, em primeiro lugar, o resultado de uma ação cognitiva e organizadora das mentes, apresentando um sentido próximo ao de palavras como estrutura; designa uma maneira de ser, um estado habitual (em particular do corpo) e, sobretudo, uma predisposição, uma tendência, propensão ou inclinação construídas ao longo dos processos socializadores, às vezes à custa de dores e sofrimento individual.

Segundo Bourdieu, na expectativa de reconhecimento ou de obediência as exigências de um espaço social específico, os agentes ver-se-iam muitas vezes predispostos a agir segundo as demandas exteriores. A ação social seria, portanto, produto de um sentido prático, um ato realizado a partir das injunções de cobranças de um contexto cultural singular. Neste sentido, disposição cultural para Bourdieu, refere-se a um conjunto de esquemas classificatórios, apreendidos de maneira sistemática ou de maneira difusa no seio da família ou no interior de instancias produtoras de valores morais e comportamentais com forte poder formador e identitário.

Numa tentativa de definição, Bourdieu afirma que disposição é exposição. É porque o corpo é exposto, posto em perigo no mundo e constantemente confrontado com o risco da emoção, que se vê obrigado a levar o mundo a sério. Segundo ele, aprendemos com o corpo. A ordem social inscreve-se nos corpos através desta confrontação permanente, mais ou menos dramática, mas que dá sempre grande lugar à afectividade e, mais precisamente, às transacções afectivas com o meio ambiental social.

Para os interesses desta discussão, proponho então, agora, já na segunda parte desta palestra sistematizar uma orientação de verificação empírica acerca das estratégias pouco evidentes de construção das identidades sociais. Espero mobilizar conceitos, autores e uma sensibilidade do olhar para estudos sobre processos socializadores difusos e pouco sistemáticos.

Reitero que o desenvolvimento de uma sociologia da socialização implica que a noção de disposição seja central nestas investigações e para se compreender totalmente uma disposição precisamos reconstituir sua gênese, ou seja, suas condições ou modalidades de formação.


É possível afirmar que além de teóricos como Pierre Bourdieu e Bernard Lahire, Peter Berger e Thomas Luckamann (1983), contribuem nas reflexões desenvolvidas acerca dos processos socializadores. Partindo do ponto de vista da sociologia do conhecimento estes autores oferecem um conjunto de aspectos que devem e poderiam ser somados aos auxílios já registrados na área.

Mais especificamente, para Peter Berger e Thomas Luckmann a transmissão de um patrimônio cultural imaterial e ou a incorporação de um acervo de conhecimentos de uma coletividade, entre eles, as disposições relativas às práticas alimentares (sexuais e ou religiosas), devem ser compreendidos como uma eterna produção de sentidos realizada na e pela interação simbólica entre grupos e individuos.

Esta perspectiva permite apreender o processo de constituição das disposições culturais, ou seja, a construção dos esquemas mentais e comportamentais dos sujeitos tendo como base a reciprocidade, a troca e a interação entre indivíduos. Segundo esta perspectiva, o mais íntimo dos traços de personalidade ou dos comportamentos, as mais íntimas das práticas só podem ser apreendidos se detectarmos a rede de relacionamentos, a configuração social e simbólica de indivíduos e seus semelhantes.

Para uma larga tradição sociológica, as condições de existência são na realidade condições de coexistência.

Nesta linha de raciocínio, perguntamos então, como se formam as disposições alimentares ou demais esquemas de ação naturalizados, tal como os relativos à sexualidade, à música ou à religiosidade?

Poderiam os hábitos precocemente interiorizados de maneira difusa, e em condições favoráveis ou não à sua boa incorporação, dar lugar aquilo que chamamos de gosto, desejo ou paixão? (LAHIRE, 2002).

Partindo dessas questões, penso que devemos privilegiar dois momentos


Em primeiro lugar devemos recuperar as modalidades e as práticas das situações de transmissão e incorporação das heranças disposicionais e entre elas destaco a importância da linguagem e a reiteração dos sentidos desta linguagem

Em segundo lugar devemos considerar as condições de possibilidade, os alcances e limites delas, ou seja, a questão da autoridade e os aspectos legitimadores que envolvem essas práticas.


Em relação ao aspecto da linguagem, enquanto modo de transmissão/incorporação, seria importante retomar a máxima teórica proposta por Berger e Luckmann, qual seja, a linguagem é responsável pela comunicação entre o eu e o outro, e por extensão os sistemas simbólicos, suas categorias do pensamento e julgamento, tornam real e objetivo o mundo, dão sentido ao nosso mundo.

Enquanto sistema de sinais e significados apreendidos desde a mais tenra infância, a linguagem falada e ou gestual torna significativa as práticas e os comportamentos sociais, fornecendo inexoravelmente uma forma de apresentação do mundo.

Esta apresentação não é neutra, exerce como desdobramentos, efeitos coercitivos, forçando a todos a entrar em seus padrões de comportamento e representação.

Em outras palavras, qualquer tema significativo que a linguagem abranja reiteradamente – entre eles as disposições alimentares - poderá ser definido como um símbolo a ser seguido e tomado como evidente e natural. Em virtude de sua acumulação este acervo social do conhecimento pode ser transmitido de geração a geração estabelecendo zonas de compreensão e convívio, elementos fundamentais para o uso em situações de rotina, tipificando individualidades, modelos de conduta e disposições de habitus etc.


O ritual da repetição e a legitimação de uma verdade


Não obstante, para Berger e Luckmann, os processos de construção simbólica do mundo, por estarem sempre em constante edificação necessitam de reforço contínuo. No que se refere às práticas alimentares, estratégias conscientes e inconscientes – a rotina das refeições, os rituais festivos familiares ou grupais, - auxiliam o homem a fornecer a si mesmo um ambiente estável para sua conduta, tipificando ações e sedimentando tradições.

Sendo instável, o processo de construção simbólica precisa todo tempo ser legitimado, explicado, justificado como tradição para as novas gerações. Para os mais jovens a memória da origem da instituição alimentar é inexistente, portanto as tradições servem como justificativas, e devem ser reiteradas para todas as novas gerações, criando um correspondente manto de legitimações que garante sua reprodução.

Neste sentido, o conhecimento expresso do que é próprio ou impróprio ao consumo alimentar ou ao comportamento sexual, ajuda a construir uma realidade, ordenando este mundo em objetos e praticas que serão apreendidos como realidade; e, em seguida, é interiorizado na forma de disposição como verdade.


Assim sendo, quanto mais importante esse acervo de conhecimento culinário (ou sexual) para a preservação da memória e estabilidade do grupo, mais cuidadoso será esse processo de fixação e legitimação; mais atentas serão as estratégias de sedimentação e reiteração de uma tradição alimentar (ou sexual). Não é fortuito o fato de comunidades migrantes reforçarem os laços de pertença a partir de memórias de um alimento comum (ou a memória dos laços familiares).


As condições de possibilidades


Indo para a terceira e ultima parte desta apresentação, eEntretanto, se até agora apresentamos as estratégias lingüísticas e cognoscitivas de transmissão de um corpo de símbolos e valores imateriais, cumpre agora considerar as condições de possibilidade que viabilizam os processos de incorporação de disposições de cultura, que embora sejam pouco perceptíveis, revelam-se poderosas e insidiosas.

Em primeiro lugar valeria reiterar que o período de contato e aprendizagem da linguagem se realiza fundamentalmente na ocasião da socialização primária, período de formação de nossa inicial compreensão do mundo. É nesse momento em que o conjunto de conceitos ou categorias do julgamento serve de elemento integrador do eu com o outro, mas sobretudo também, momento no qual se estabelece um diálogo interno entre objetividade social e a subjetividade dos individuos.

O acervo de conhecimentos que deriva de um universo simbólico específico de cada cultura adquirido na primeira infância é responsável pela constituição de uma identidade pessoal e grupal difícil de ser rompida e ou desacreditada. Nesse sentido, os ensinamentos adquiridos primariamente, entre eles os alimentares ou sexuais, são aqueles mais profundamente arraigados e constitutivos de nossa visão acerca do mundo e de nós mesmos.

Como segunda condição de possibilidade que assegura a permanência de certos aspectos de uma cultura imaterial, lembraria a regularidade em que elas se apresentam. Se primeiramente, destaquei que as disposições alimentares apreendidas na pequena infância, são insidiosas estratégias de construção de uma identidade, associada a elas, teríamos o esforço continuado de vivenciar estímulos relativos a elas em mais de uma ocasião no cotidiano.

Ou seja, o ato de comer, o que comer e seu preparo revelam idiossincrasias grupais que são continuamente repetitivas, seja em grupo ou individualmente.

A regularidade destas práticas expressa uma assertiva sobre a identidade de um coletivo, reforça sem conflito ou divergência, um gosto ou disposição a um estilo determinado de como e o quê comer. Tempo, regularidade, freqüência, rotina, são algumas noções que expressam condições sociais favoráveis à construção de sentimentos identitários; trabalham a favor de uma orquestração de sentidos em que evidencias exteriores compõem representações acerca de uma individualização.

Não obstante, nem a linguagem nem a reiteração de valores culturais teriam força suficiente se não contassem com os recursos de um sentido de autoridade que perpassam todos eles. Seria necessário pois compreender as funções de domínio dos guardiões da herança cultural alimentar ou identitária.

Como bem lembraria Berger e Luckmann o processo de socialização primária se realiza com sucesso na maioria das vezes devido à forte carga afetiva entre socializados. Interiorizamos e nos identificamos com o mundo exterior pois necessitamos de um reconhecimento de nossos pares, em especial um reconhecimento dos outros que nos são significativos.

Os indivíduos incorporam o social sob a forma de afetos na valorização negativa ou positiva de prescrições ou enunciações performativas. O tom de voz, os silêncios, olhares e gestos sinalizam sutilmente uma ordem ou uma chamada à ordem social. As condições de eficácia dessas prescrições simbólica e silenciosamente transmitida estão duradouramente inscritas nos corpos.

Ademais, a autoridade e ou domínio legitimado dos portadores de uma herança cultural, entre elas a alimentar ou sexual, são elementos que revelam condições de aceitação e adaptação dos mesmos.

Contudo, como bem alertou Berger e Luckmann (1983), a bagagem transmitida no período de socialização primária não são imutáveis. Estão profundamente arraigadas em nosso inconsciente identitário, mas podem ser remodeladas desde que condições específicas de socialização permitam sua revalidação ou alteração. Em trajetórias migratórias ou de transformação social podemos observar mecanismos de reforço dos laços pela cultura grupal, em que aspectos da alimentação podem se tornar vigorosas estratégias identitárias. Ao contrário, em condições de pluralidade cultural podemos identificar táticas de distinção e ou de hibridismo na construção das disposições de cultura, abrindo espaço para uma variedade de apreciações no âmbito das praticas alimentares, dentre uma multiplicidade de outras práticas.

Não obstante, ainda que ambos sejam aspectos importantes, não se poderia abordá-los nos limites dessa apresentação; servem, contudo, como lembrete ou convite para próximas investigações.

Muito obrigada pela atenção.