segunda-feira, 30 de maio de 2011

Palestra - Prática docente: algumas questões do campo sociológico

SEMINÁRIO - “TRINTA ANOS DO CURSO DE PEDAGOGIA/CCHS/UFMS (1981-2011)

Campo Grande - Mato Grosso do Sul - Dias 24 a 27 de maio de 2011.

Maria da Graça Jacintho Setton

Professora de Sociologia

Faculdade de Educação – USP- Brasil

Pratica docente: algumas questões do campo sociológico

Introdução

Primeiramente gostaria de parabenizar ao curso de Pedagogia da Universidade do Mato Grosso do SUL que completa nesta ocasião 30 anos de existência. Certamente é uma data que precisa ser homenageada e mais do que isso esta comemoração enseja um momento de reflexão sobre nossa prática enquanto investigadores da área da Educação.

Gostaria de agradecer também a oportunidade de estar aqui com vcs discutindo um tema de extrema importância nos tempos atuais, ou seja, a prática docente, a partir de questões do campo sociológico.

O que trago para hoje, trata-se nomeadamente de uma discussão ainda de caráter exploratório e preliminar, mas que busca elementos e ou subsídios para a orientação de trabalhos de pesquisa no campo da teoria da socialização.

Mais especificamente um esforço em problematizar a prática do educador a partir da noção de habitus docente, noção muito utilizada nas investigações sobre professores, mas que sempre oferecem inquietações, pois generalizam um comportamento, um jeito de ser difícil de ser alcançado dado as condições continentais no Brasil, dado os seus distintos espaços de aprendizado e formação e, as diversas trajetórias desse segmento social em constante crescimento.

Ao conhecer, discutir e problematizar a prática docente, a partir da teoria das disposições de cultura, minha área de concentração de pesquisa, julgo estar contribuindo para o campo das políticas públicas, para prática cotidiana do educador, bem como pode servir de subsídio para os cursos de Pedagogia, hoje tão questionados e em vias de esvaziamento.

É nesse ponto que vou me debruçar hoje. Vou propor a questão: em tempos atuais deveríamos usar a noção de habitus docente sem questionamentos ou poderíamos trocá-la por uma noção mais próxima ao real empírico e afirmar que não teríamos um habitus docente coerente e único, mas teríamos um conjunto de disposições hibridas do habitus que comporiam a prática do docente.

A reflexão, portanto parte de uma experiência teórica acerca da teoria disposicionalista da atualidade em que advoga a justaposição de distintas instâncias educativas no Brasil contemporâneo.

Primeiramente, seria preciso lembrar que o processo de socialização nas sociedades atuais é um espaço plural de múltiplas referencias identitárias. Ou seja, a modernidade brasileira caracteriza-se por oferecer um ambiente social no qual o professor encontra condições de forjar um sistema híbrido de referências disposicionais, mesclando influências advindas de muitas matrizes de cultura – por exemplo, a família, suas escolas de formação, a religião, as mídias, seu grupo de pares etc.

Em tese, poderíamos afirmar que o que temos pela frente é um professor plural, na acepção de Bernard Lahire. Um professor que age, pensa e ensina segundo uma multiplicidade de influências culturais.

Para desenvolver esse argumento, parto de trabalhos anteriores em que analisei a particularidade da configuração cultural no Brasil, desde aproximadamente a década de 1970. Considerei, primeiramente, a coexistência marcante de diferentes matrizes socializadoras na formação cultural do povo brasileiro registrando duas temporalidades bastante distintas. Temporalidades ainda em curso que podem ser caracterizadas, grosso modo, pelos pares de conceitos periferia / centro, tradicional / moderno, rural / urbano, cultura oral / cultura letrada.

Especificamente, em relação aos professores pesquisas vem apontando a imensa variedade de condicionantes sócio históricos de sua prática, formação e experiência profissional. Dessa forma, justifica-se uma inquietação sobre a existência de um único habitus em amplos segmentos da população docente.

Na perspectiva de desenvolver essa hipótese em um argumento teórico consistente, proponho uma breve apreciação de dois autores paradigmáticos que ajudam a avançar nessa direção, Pierre Bourdieu e Bernard Lahire.

Bernard Lahire é atualmente professor da École Normale Superieure Lettres et Sciences Humaines e Diretor do Grupo de Pesquisa sobre Socialização, ambos sediados, na Universidade Lumière 2, em Lyon, França. Lahire tem como tema central de suas pesquisas o processo de socialização e os processo de construção de disposições sociais e culturais.

Bernard Lahire é, simultaneamente, grande admirador e grande crítico da obra de Pierre Bourdieu. Observa-se em seus escritos uma acentuada necessidade de problematizar uma das principais contribuições desse autor. Como ele mesmo diz, trabalha a favor e contra Bourdieu o tempo todo. Um dos pontos centrais da tese de Lahire é questionar a teoria da prática de Bourdieu, a teoria da ação dos agentes sociais, principalmente no que se refere à teoria do habitus.

Segundo Lahire, não se pode pensar o indivíduo contemporâneo sendo regido apenas por um único princípio de conduta. Hoje, cada vez mais, somos socializados com base em uma multiplicidade de princípios, o que poria em xeque a teoria do habitus. Apoiado no conceito de habitus, Lahire afirma que Bourdieu constrói um homem perfeito, enquanto a realidade demonstra ser o indivíduo altamente complexo.

A teoria do habitus de Bourdieu é compreendida por Lahire como um princípio de unificação das práticas e representações, em outras palavras, um mito baseado em uma identidade pessoal invariável. Assim Bernard Lahire reitera que a produção homogênea de um habitus em todas as esferas da vida é um sonho.

Para Lahire, desde que um ator esteja simultânea e sucessivamente no seio de uma pluralidade de mundos sociais não homogêneos e às vezes contraditórios, como é o caso de nossos docentes, ele é exposto a um estoque de esquemas de ação ou de habitus não homogêneos, não unificados e, consequentemente, a práticas heterogêneas, variando segundo o contexto social o qual será levado a valorizar.

Para Lahire é mais frequente encontrar atores individuais menos unificados e portadores de habitus heterogêneos e, em certos casos, opostos e contraditórios. Sem postular uma lógica de descontinuidade absoluta pressupondo que esses contextos sejam radicalmente diferentes, sugere ponderar que nem todas as experiências são sistematicamente coerentes, homogêneas e, mesmo, compatíveis. Para Lahire vivemos simultânea e sucessivamente em contextos sociais diferenciados e não equivalentes.

Poderíamos afirmar segundo esse raciocínio que o professor seria um indivíduo plural, isto é, produto de experiências de socialização forjadas em contextos sociais múltiplos e heterogêneos. Os professores pertenceriam, simultânea e sucessivamente, no curso de sua trajetória, a universos sociais variados ocupando posições diferentes.

Em síntese, segundo Lahire, um indivíduo exposto a uma pluralidade de mundos sociais se submeteria a princípios de socialização heterogêneos e, às vezes, contraditórios e, em assim sendo, não responderia ou agiria segundo um sistema único de disposições de habitus.

Contudo, ainda que muito do que B. Lahire apresentou seja um avanço em relação à teoria da socialização, julgo que para os interesses desta reflexão deveríamos, primeiramente, fazer algumas considerações de ordem mais geral a respeito de sua obra.

Partidário, então, de uma sociologia do indivíduo ou de suas singularidades, Lahire pretende dar um salto em relação às teorias sociológicas, especificamente à sociologia da socialização. Em seu ponto de vista, a teoria sociológica, há certo tempo, passa por um estado de letargia aceitando sem questionamentos a teoria da prática de Bourdieu.

Lahire, então, aponta quais os erros que a sociologia vem sistematicamente seguindo ao ocultar a possibilidade de construir outro olhar sobre a realidade do social bem como o que a própria ciência da sociedade acrescentaria e ganharia em esclarecimento se estivesse aberta para outra leitura.

Em suas discussões mais recentes, em O homem plural e A cultura dos indivíduo, Lahire parte da hipótese de que o indivíduo se socializa com base em uma pluralidade e uma heterogeneidade de disposições incorporadas, não agindo sobre o mundo, não construindo suas práticas seguindo um princípio único norteador. Para ele, o indivíduo faz uso de uma grande variedade de referências disposicionais, às vezes incoerentes ou até mesmo contraditórias. Aposta na pluralidade das fórmulas geradoras das práticas incorporadas.

Nesse sentido, ele de fato avança nas discussões sobre o tema da socialização na contemporaneidade. Para contextualizar uma nova configuração de socialização no mundo moderno, Lahire considera as mudanças sofridas nas relações institucionais fazendo de suas colocações leituras imprescindíveis. E atenta também para a necessidade real de melhor circunstanciar empiricamente as diferentes formas de se produzirem disposições culturais.

Não obstante, acredito que suas críticas podem e devem ser problematizadas.

Para o interesse desta discussão, creio ser importante enfatizar, suas críticas relativas ao conceito de habitus. Para esse ele, é que se definimos habitus como um sistema homogêneo de disposições gerais, permanentes, sistemas transferíveis de uma situação a outra, de um domínio de práticas a outro, então cada vez menos agentes de nossas sociedades serão definíveis a partir de um tal conceito.(....) Nas sociedades em que todos conhecem muito cedo uma diversidade de contextos socializantes os patrimônios individuais de disposições raramente são muito coerentes e homogêneos.

Contudo, ainda que se considere sua contribuição inegável, acompanhando com interesse o desenvolvimento de seus argumentos, pensa-se que a compreensão de Bernard Lahire sobre a teoria da ação ou sobre a teoria do habitus de Bourdieu deve ser repensada.

Ou seja, diferentemente de Bernard Lahire, postulo que o conceito de habitus, tal como discutido por Bourdieu, pode ainda dar conta da especificidade da formação da identidade pessoal e grupal dos indivíduos na contemporaneidade. Mais do que isso, considero que o conceito de habitus fundamenta a hipótese de que é preciso compreender o habitus docente de forma atualizada. Isto é, fruto de um processo amplo, complexo e estruturado com base em uma multiplicidade de experiências formadoras, que resulta em um habitus composto por disposições híbridas.

O entendimento que faço sobre a teoria do habitus poderia incluir, sim, o adjetivo plural. Julgo expressivo, a noção de habitus plural pois resulta do encontro e ou enfrentamento de muitas referências, às vezes díspares.

Mas reitero que não deixaria de ser um sistema de referência, uma matriz geradora de disposições, ainda que sejam disposições heterogêneas e ou híbridas. Um conceito necessário para explicitar o laço entre professor e suas instituições formadora.

Em outras palavras, um habitus docente plural, mas representado na forma de um sistema, sem perder de vista o vivido pelos sujeitos, sistema capaz de gerar princípios de ação, percepção e julgamento. Ou seja, produto de vivências de socialização contextualizadas em muitas matrizes culturais, em muitos contextos temporais distintos, presentes na vida de cada um dos docentes, experimentadas, sobretudo, em situações coletivas, contudo realizadas por ele.

Assim, pensar o docente contemporâneo a partir da configuração de forças entre essas agências de socialização impõe um outro aporte teórico, obriga a necessidade de compreender a prática docente de maneira mais complexa e dinâmica

Compreendo que é possível divergir de Lahire quando ele afirma que a teoria do habitus de Bourdieu não é mais produtiva para pensar o homem contemporâneo, pois Bourdieu o construiu com uma base sistêmica e unitária, homogênea. Um mundo socializador que não existe mais nas formações modernas.

Habitus, segundo minha leitura, é um conceito e, portanto deve ser circunstanciado historicamente, definição que expressa a mediação indivíduo-sociedade, é principio explicativo das práticas e das representações de indivíduos em conjunturas específicas e particulares. Habitus deve ser visto como mediação que se constrói processualmente, em muitos momentos da trajetória dos sujeitos, conjunto de experiências acumuladas e interiorizadas, incorporadas, assim sendo, passíveis de se sedimentarem e se realizarem como respostas aos momentos de necessidade.

Habitus não precisa ser coerente e homogêneo para se constituir enquanto tal. Pode ser construído por disposições híbridas, desde que as condições de formação assim o determinem.

Nesse sentido, avalio também que o conceito de habitus construído por disposições híbridas é mais adequado do que a afirmação de Lahire de incoerente ou plural, pois admite mais explicitamente a ideia de criação, amálgama, mistura realizada pela vivência e pela capacidade de cada docente montar uma experiência identitária.

O repensar da teoria do habitus com base na sua hibridação é melhor também, pois ajuda a refletir na conjunção de elementos de matrizes de cultura díspares, em contextos sociais e profissionais variados

Não há um único habitus docente, há o resultado de um conjunto heterogêneo de experiências de formação cultural que particulariza cada um. Assim é possível pensar o habitus dos muitos docentes brasileiros, que vivem em formações de cultura diferenciadas, modernas ou tradicionais.

Norte, Sudeste e Centro Oeste do Brasil, zona rural ou urbana, periferia ou centro, múltiplas formações de cultura só aparentemente contraditórias, pois elas enquanto conjunto de experiências, são responsáveis por proporcionar as disposições híbridas do habitus do educador.

Essa é a diferença, não é simplesmente plural nem simplesmente incoerente e contraditório o habitus dos docentes da contemporaneidade e como decorrência suas práticas. A experiência de socialização vivida em formações sociais como a brasileira impõe pensar os habitus como mais que plurais, eles podem ser produto de experiências de socialização particulares, ou resultado de valores identitários oriundos de muitas matrizes de cultura, mas nem por isso são incongruentes ou contraditórios; são antes de tudo compostos por disposições híbridas.

Ou talvez habitus com disposições sincréticas, pois sua criação admite a perda de alguns aspectos, mas a admissão de outros em um processo de difícil previsão. É produto criativo de docentes em situações práticas peculiares e singulares, pois depende de um conjunto de circunstâncias sociais, políticas, religiosas, econômicas, escolares, midiáticas, globalizadas, que não se apresentam iguais para todos.

Reitero, trago aqui apenas algumas notas exploratórias acerca da prática docente a partir de algumas questões atuais da sociologia. Penso que pode ser um insight instigante na problematização da noção habitus docente, que não faz jus a complexidade das experiências de formação e profissionalização do educador brasileiro.

Muito Obrigada pela atenção.

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